“Não nos esqueçamos de que os povos que alienam a sua tradição e (…) toleram que se lhes roube a alma, perdem, juntamente com a própria fisionomia espiritual, a sua consistência moral e, por fim, a independência ideológica, econômica e política. Uma maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça e os percursos de integração é esvaziar de sentido ou manipular as «grandes» palavras. Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas e desfiguradas para utilizá-las como instrumento de domínio, como títulos vazios de conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação” (Papa Francisco, Fratelli tutti)
A consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça, a sensibilidade fraterna, são essenciais para a vida de um país, para a sanidade e o equilíbrio de uma sociedade. Como permanecer na tonância e percussão dessas dimensões fundamentais que asseguram o conviver humano? Com constância e perseverança trazer à luz o sentido, os dizeres, as nuances da democracia, da liberdade, da justiça e da fraternidade. Trazer à elucidação a democracia, não deixar que esvazie ou se camufle o sentido primeiro e o vigor que a sustenta; respirar o ar da liberdade, principalmente diante de sugestões e ofertas de ideologias que aprisionam; espargir a força da justiça como horizonte que assegura a convivência, equilibra as relações e afasta a injustiça e a ditadura; oferecer a fraternidade como base do diálogo, a possibilidade da escuta do que deixa ser irmãs e irmãos; fraternidade a força que une, a força da unidade.
Assim, democracia, liberdade, justiça e fraternidade-unidade, necessitam de constante exercício para não se perder a força que conduz esses pilares assinalados por Papa Francisco. Quando esvaziadas, destonificadas, tornam-se “instrumento de domínio, como títulos vazios de conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação”.
A depredação da Praça dos poderes é o sinal de que no esvaziamento dos fundamentos, o desaparecer da razão das palavras, o esquecimento dos fundamentos das palavras, é possível realizar ações que agridem a democracia, a desprezam a liberdade, ignoram a justiça e se esquece a fraternidade. Parte-se para uma cultura da agressão, da inverdade, da violência, da depredação, do golpe.
Um espaço pensado para ser da democracia, da liberdade, da justiça e da unidade da Nação, quase desapareceu numa tarde de domingo. O espaço do Legislativo, Executivo e Judiciário como expressão da Nação e do Estado, o espaço de encontro para o bem comum de todos os brasileiros e brasileiras, deixou de ser espaço, para ser um círculo fechado de violência, de irracionalidade. O perigo é continuar a desprezar, a esvaziar o sentido e a manipular as “grandes” palavras em favor de interesses meramente de ideologias fechadas.
A democracia garante a diversidade cultural e racial, a liberdade religiosa e de culto. É o modo de ser da democracia que ajuda um país a ser país, nação, mas também Estado. A democracia integra a todos, não exclui ninguém. É o modo de ser povo, de organizar-se que exige a participação de todos que formam um povo. Ela evita que uma pessoa ou grupo tome para si o poder de governar. Possibilita as relações entre os poderes para o bem de todos.
Jesus Cristo nunca convidou a fomentar a violência ou a intolerância. Ele próprio condenava abertamente o uso da força para se impor aos outros.
Cardeal Leonardo Steiner
Arcebispo de Manaus
*Publicado Jornal Em Tempo – 14 e 15 de Janeiro de 2023