As flores – Artigo D. Sergio Castriani – Jornal Em Tempo – 13 e 14.2.2021

Desde que moro na casa do clero, na Cachoeirinha, me dá prazer ver as plantas que compõem o jardim. De uns tempos para cá notei que há uma que domina pelo volume e pela beleza. Quis saber o nome. Ninguém sabia dizer. Temos um seminarista expert em botânica e que conhece os nomes de todas as plantas. Liguei para ele e mostrei uma fotografia da dita cuja. Ele não pestanejou e disse: São Ixórias. Disse com uma satisfação que mostrava bem o gosto que lhe dá a botânica. Achar alguém que se interessa pelas Ixórias num domingo à tarde é ganhar na sorte grande e ele já está convidado para vir aqui em casa dar um curso sobre as Ixórias.
Descobri que são muitas espécies, e no nosso quintal temos ao menos quatro. Usada para fazer cerca viva, prima pela beleza em jardins de estilo francês quando canteiros geométricos são primorosamente cuidados. Em terras quentes elas são os muros ideais. Lembro-me das ruas de Manaus que são urbanizadas. Em boa parte dos jardins usam-se as Ixórias. Manaus fica caracterizada por elas. Acho que podemos dizer que Manaus é a cidade das Ixórias.
Nestas alturas do artigo fui internado com suspeita de Covid-19. Pensei muito no rumo a dar as minhas reflexões sobre as Ixórias. Compará-las ao pessoal médico que me atendeu, seria muito fácil, assim como compará-las aos companheiros de quarto daquela primeira noite hospitalizado. Uma Manaus mais cheia de Ixórias seria uma Manaus mais bonita. Não só bonita, mas menos falsa da falsidade dos políticos que tinham deixado a situação chegar a tal ponto. Endemias teremos sempre na história da humanidade. Mas já temos conhecimentos suficientes da natureza para que a endemia possa ser vivida como um jardim de Ixórias. Na longa noite da internação não podia deixar de pensar nos belos jardins de Manaus. Eles apontam para a vida.
Um jardim se aproxima da divindade porque transforma o elemento bruto em racionalidade. Precisamos de mais jardins, mesmo que custem caro. A beleza não substitui a mesa, mas oferece humanidade. Uma humanidade que parece ter sido perdida. A cada gesto bonito de solidariedade dos mais pobres assistimos a corrupção e o ganho fácil. A corrupção insiste em aparecer em tudo.
O mais difícil naquela longa noite era pensar que eu estava usando o oxigênio que pertencia a outro mais necessitado que eu. Mas a noite passou e veio a boa notícia: não era Covid-19. Mas, aí comecei a conhecer meu corpo com exames e mais exames. Descobri que é mais fácil ser internado do que desinternado. Dias e dias nas mãos amigas dos cuidadores, técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, maqueiros, pessoal da cozinha, limpeza, todos heróis de um panteão humano memorável. Não é sua culpa a desorganização do sistema de saúde. Aliás, basta uma folguinha no sistema para que eles se reorganizem como um jardim de Ixórias que traz beleza a este mundo imperfeito. Se eu sair daqui, minha visão de mundo mudou, espero que seja para melhor e de forma definitiva, com a consistência das Ixórias. Este artigo começou de um jeito e terminou de outro, como a vida.

ARTIGO DE DOM SERGIO EDUARDO CASTRIANI – ARCEBISPO EMÉRITO
JORNAL: EM TEMPO
Data de Publicação: 13 e 14.02.2021

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