Comunidade dos sofredores da rua – Artigo D. Sergio Castriani – Jornal Em Tempo – 23/8/2020

Durante oito anos participei em São Paulo da comunidade dos sofredores da rua. Foi para mim um tempo de descoberta de seres humanos maravilhosos que estavam numa situação especial. A vida os tinha conduzido até a rua, mas cada um tem sua história. Uma história que os torna únicos. Lembro-me das primeiras amizades, só possíveis porque a comunidade proporcionava o encontro entre mundos que não se tocavam. A comunidade foi fundada por algumas mulheres lideradas por uma uruguaia que me disse uma vez: se Jesus veio como pobre para os pobres, então não é necessário sair da rua para ser Igreja, mas deve ser possível viver como Igreja permanecendo na rua. E nós se quisermos encontrar Jesus temos que encontrar-nos com os sofredores da rua. E fui ao encontro deles.

Encontrei homens e mulheres livres das convenções sociais, que falavam para mim o que pensavam, sem medo. Já tinham perdido tudo na vida, não lhes sobrara mais nada além das vestes do corpo cansado. Não acreditavam mais em ninguém só porque falasse com autoridade. Sua casa e moradia era determinada pelo lugar onde guardava os seus últimos pertences e, às vezes, um cachorrinho os acompanhava. Difícil os primeiros contatos. Mas depois que a amizade se fortificava e viam que tinham valor, tinham um nome, sua vida era valorizada por ser uma vida humana, formando uma comunidade, então eu descobria um cidadão que mereceria ser ouvido nas questões urbanas porque vive na cidade, vive a cidade.

Um cidadão que tem seus direitos: direito de ir e vir, direito de morar onde quiser, direito à proteção, direito à saúde. A população de rua fica nas praças centrais, na área portuária, em lugares degradados do centro histórico. A população normal não frequenta estes lugares e tudo é feito para tirar a sua visibilidade. A pandemia trouxe um problema. O povo da rua vive da rua, se a rua está sem vida o povo morre. Foi bonita a reação das pessoas que se organizaram para, junto com o poder público, resolver a situação.

Pobres sempre tereis entre vós, disse Jesus. Uma população de rua sempre haverá nas grandes cidades. A esta população que está na rua, não importa se por vontade própria ou por imposição de vida, tem que ser reconhecido o direito de viver dignamente. Isto não é fácil porque na sociedade quem não produz nada de útil não tem o direito de viver. Ao mesmo tempo o fato de estar na rua, não ter endereço fixo, já o caracteriza como marginal perigoso. O fato de estar na rua diz que você é um bandido.

Mas nós temos que dizer aos homens e mulheres que vivem em situação de rua: Você é meu irmão. Aceito você como é. Quero que você viva hoje. Não importa o seu passado, você tem direito a ser feliz hoje. Eu vivi momentos de intensa felicidade com o povo da rua. Cada ano, na semana da pátria, se organizava uma missão durante a qual dormíamos na rua com o povo. Nestas missões fazíamos tudo em mutirão. Foi puro reino de Deus antecipado. Minha visão de mundo mudou e muito do que penso e faço devo à comunidade. Por respeito às pessoas não costumo falar muito deste tempo da minha vida e quando falo não cito nomes.

ARTIGO DE DOM SERGIO EDUARDO CASTRIANI – ARCEBISPO EMÉRITO
JORNAL: EM TEMPO
Data de Publicação: 23.08.2020

 

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