Há uns dez anos, junto com uma irmã e o motorista do barco da Prelazia de Tefé, fazia uma visita pastoral na paróquia de Maraã. A religiosa era a irmã Isabel Casamali e o motorista era o Etevaldo Bezerra. Chegamos num ponto em que o rio Auati Paraná se encontra com o Japurá. Como era época de cheia, a maioria das pessoas tinham ido para a cidade. Mas numa comunidade de índios Kanamari, onde paramos para dormir num fim de tarde, encontramos um casal idoso e algumas crianças. As casas todas, estavam no meio da água e para circular por elas era preciso utilizar uma canoa. Decidimos que dormiríamos ali, mas que iríamos visitar o casal na manhã seguinte, porque mesmo com tantos anos viajando, estas canoas minúsculas davam medo.
No outro dia de manhã fomos a casa dos índios. Conversamos muito e num determinado momento eu disse que precisávamos ir embora. A senhora então disse: Você não vai celebrar missa? Eu mudei de planos na hora e disse: Vamos celebrar já e depois nós vamos logo embora. Então ela me disse: Toda vez que passa um padre ele celebra. Rapidamente a irmã e o motorista arrumaram um altar numa velha máquina de costura. Iniciei a missa cantando: Ó Pai somos nós o povo eleito que Cristo veio reunir. Depois de fazer a saudação comecei a fazer uma catequese. Eu que não gosto de confundir as coisas. Perguntei então: O que é a missa? A velha índia como quem não quer nada disse: É para lembrar a morte de Jesus. Achei uma boa resposta. Mas quando quis continuar a índia disse: ele ressuscitou e veio para o Brasil, e aqui no Brasil ele virou um “Pica Flor”. As coisas eram um pouco mais complicadas que aparentavam ser.
Lembrei-me então do livro do registro de batizados da Paróquia de Tefé onde estão registrados centenas de Pica Flores. Não sei se era uma tribo ou simplesmente um nome genérico para índios. Aquela mulher entendeu o mistério eucarístico. Jesus nos libertou mas ainda há muitas coisas que nos escravizam. Tudo isto trazemos para a celebração. Jesus permanece vivo no pão para caminhar conosco sempre, dando-nos força para viver com dignidade. Mas naquele dia eu passei a respeitar muito mais os indígenas, sobretudo os já avançados em idade. Mas não teria escutado aquela pérola de reflexão teológica se não tivesse saído de casa, passado hora e horas num barco e, sobretudo, dormido nas comunidades.
Tenho celebrado a missa todos os dias na capela da casa do clero. Por causa da pandemia a assembleia sempre é muito reduzida. Mas eu sei que mesmo quando estamos só, em dois, nos acompanha a multidão que passou e passa pela grande tribulação. Sabendo que eu posso celebrar a missa quando quero, porque sou padre, sinto-me mal quando passo um dia sem celebrar. Em primeiro lugar agradeço a Deus todos os benefícios recebidos por mim e pela humanidade. Depois é preciso pedir perdão pelos pecados meus e do mundo, só então vem os pedidos mais para os outros que para si. E depois quando o sinal permanece no pão só resta adorar o Santíssimo Sacramento do altar, onde se juntam todos os Picas Flores que por sua morte foram assumidos por Jesus.
ARTIGO DE DOM SERGIO EDUARDO CASTRIANI – ARCEBISPO EMÉRITO DE MANAUS
JORNAL: EM TEMPO
Data de Publicação: 14.6.2020