Nunca é agradável falar da morte, mas é necessário. Nestes dias em que ela ameaça a todos de maneira sorrateira, chegando muito perto de nós, e criando uma sensação de impotência e de desalento, quando ao mesmo tempo estamos vivenciando na liturgia o tempo pascal. As orações todas nos falam de uma vitória da vida. E ao redor de nós sentimos o odor de morte e destruição. Pode parecer que vivemos uma vida dupla, uma marcada pela morte e outra pela vida. Mas a vida é uma só. Por que está sendo difícil lidar com a realidade?
Em primeiro lugar, o fato de não estarmos podendo viver o luto e os ritos de morte quando nós nos apropriamos do evento e o controlamos. O fato de que as pessoas estão morrendo sozinhas vai contra as nossas convicções e costumes de estar junto aos agonizantes e velá-los depois que morrem. Sentimos não poder fazer isto com os que estão morrendo e temos medo que isto aconteça conosco.
Na nossa cultura parece que fica doente quem quer. Quem toma muito refrigerante, não pratica esportes, come errado, fica estressado com os problemas dos outros, não tira férias, não faz exames periódicos, é um sério candidato a uma morte prematura. Agora chega este vírus que ninguém sabia que era tão perigoso assim até bem pouco tempo. Já estávamos acostumados a viroses, mas esse é a exceção de todas as regras. Sentimo-nos impotentes diante de um inimigo assim. Esquecemos que a humanidade já viveu pandemias que mataram mais gente que esta e a humanidade sobreviveu.
Quando minha mãe morreu, passou por uma lenta agonia. Eu já tinha completado meus 10 anos de padre e já estava perto dos onze. Uma colega do curso de pós-graduação, especialista em psicologia da religião me disse numa sessão de terapia: A morte é um evento natural, assim como as pessoas nascem, morrem. O que dramatiza a morte são as suas circunstâncias. Uma criança, um jovem que tem a vida pela frente, não está ainda na hora de morrer. Quando visitamos um doente podemos fazê-lo sentir-se culpado por estar causando uma confusão tão grande. E o doente, além do sofrimento físico, terá um sofrimento moral insuportável.
Mas, acima de tudo, temos a nossa fé que nos dá a certeza da ressurreição, e isto muda tudo. Nós choramos como Jesus chorou diante do túmulo de Lázaro. Nós nos revoltamos quando as pessoas morrem antes da hora em condições indignas. Nós temos medo de precisar ser internados, correndo o risco de não sair vivos. Estamos torcendo para que os cientistas descubram uma droga que o destrua ou uma vacina que o neutralize. Sabemos que esta também é a vontade de Deus. Mas Deus já nos deu a vida. Quando fomos batizados ele já nos adotou como filhos e portanto herdeiros da vida eterna. Não importa a quantidade de anos que passamos por aqui. Sempre serão poucos e serão muitos. Se for agora a nossa hora vivamos com dignidade a passagem. Se sobrevivermos seremos testemunhas da misericórdia, responsáveis por construir uma sociedade humana mais fraterna, solidária e humilde. Que o medo de morrer não nos paralise para que não morramos antes da hora.
ARTIGO DE DOM SERGIO EDUARDO CASTRIANI – ARCEBISPO EMÉRITO DE MANAUS
JORNAL: EM TEMPO
Data de Publicação: 3.5.2020