No dia em que a Igreja celebra o Batismo de Jesus, me veio à lembrança Dona Luzia. Dona Luzia é descendente de cearenses, que vieram para o Amazonas como soldados da borracha. Nasceu num seringal do Rio Juruá, hoje município de Itamarati. Muito jovem, casou-se e foi logo morar numa colocação no meio da floresta. Durante quase quarenta anos, seu marido cortou seringa. Viveram toda a transformação econômica, política e social dos anos setenta e oitenta, participando da criação do sindicato e filiando-se a um partido de esquerda. Ao mesmo tempo guardaram a fé recebida dos pais, fé de gestos simples e de expressões concretas como a reza do rosário e a devoção aos santos e, profundamente católica, no respeito aos padres e na celebração dos sacramentos, sobretudo o batismo, o matrimônio e a Eucaristia.
Na cidade, para onde migraram, continuou a sua vida de trabalho constante e diário, sempre colaborando nas despesas da casa e mantendo uma sadia independência. Como não tiveram filhos, criaram sobrinhos. Até hoje, com a visão comprometida, com as forças diminuídas por tantos e tantos anos de trabalho duro e com as doenças que a idade avançada agravam, permanece lúcida, crítica, capaz de análises perspicazes. Como já não pode mais ler, nem ver televisão, sua fonte de informação e entretenimento é o rádio. Recebe as visitas na sua casa que mantém as características de uma casa ribeirinha, onde a sala se confunde com o lugar de dormir com seus armadores de rede, e a cozinha é o verdadeiro lugar do encontro, pois é aí que a vida se renova. Está atenta ao que acontece na Igreja e no Brasil. Come muito pouco, driblando prognósticos sombrios sobre o tempo de vida que lhe restava viver. Quer companhia e aceita ajuda, mas preza a sua independência, uma liberdade que só os pobres têm porque nada devem, tudo doaram, e lhes basta a graça de Deus.
Na última vez que visitei esta senhora, que atingiu um grau de humanidade invejável, estava injuriada. Numa celebração de batismo escutou o padre perguntar aos pais se queria que seus filhos se tornassem cristãos. Ora, me dizia ela, a pergunta não é esta. Cristão todos somos, o batismo nos torna membros da Igreja, mas não somos bichos nem animais quando nascemos. Sem entrar numa longa discussão teológica, percebi que naquele momento ela dizia em palavras simples aquilo que o Papa Francisco vem nos dizendo desde o início de seu pontificado: temos uma origem comum, todos viemos da fonte misteriosa do amor de Deus. Só quando entendermos e vivermos esta realidade haverá paz duradoura. Religiões podem dividir, criar seitas, semear ódios. Ao contrário disto, Jesus veio anunciar o Reino do Pai misericordioso que cuida de todos. Cristãos, deveríamos ser sinais de unidade, de amor, de serviço, de gratidão, de vida pautada por valores eternos. Hoje temos um grande encontro da Pastoral do Batismo na Arquidiocese de Manaus. Oxalá nossos agentes tenham esta visão da vida. Talvez só os simples e os pequeninos possam entender tudo isto. Sejamos todos como crianças, por que delas é o Reino dos Céus.
ARTIGO DE DOM SERGIO EDUARDO CASTRIANI – Arcebispo Metropolitano de Manaus
JORNAL: AMAZONAS EM TEMPO
Data de Publicação: 13.01.2019