Em uma manhã de quarta-feira ensolarada, de verão amazônico, quando se tem a impressão de que o sol está mais próximo da Terra, dirigi-me a um tradicional hospital infantil da cidade, o Dr. Farjado para uma cerimônia inusitada. Iriamos celebrar o batismo da pequena Anahi Clara, que estava na UTI. Com três meses de vida já enfrentara a sua terceira cirurgia. Encontrei-me com o pai e os padrinhos no saguão do hospital. Confesso que estava um pouco apreensivo. Como se desenrolaria a cerimônia dentro de um ambiente controlado? Ao chegar no local fomos informados de todos os procedimentos de segurança e depois de higienizar nossas mãos e colocar máscaras entramos. Fomos informados que tudo deveria ser feito o mais rápido possível. Fiz então o essencial. Pedi a enfermeira água esterilizada e depois de perguntar aos pais e padrinhos se eles queriam que ela fosse batizada, derramando três gotas de água sobre a cabeça daquela criança disse Anahi Clara, eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Não ousei ungi-la com o óleo do Crisma, mas disse que pelo batismo ela havia se tornado uma profetisa, uma sacerdotisa e uma rainha, e que agora imersa no Amor ela era um membro do Corpo de Cristo na Terra. Esperamos um dia apresentá-la a sua comunidade.
Na fé tínhamos oferecido a ela o dom mais precioso que temos, a vida da graça, imerecida mas real. Poucas vezes experimentei tão fortemente a gratuidade da salvação, e ao mesmo tempo a necessidade da participação humana na redenção. Assim como aquelas crianças dependiam da competência de médicos, enfermeiras e técnicos para sobreviver, também precisavam da fé de seus pais para que a graça de Deus se fizesse presente. O ambiente todo como que se transfigurou no sorriso da plantonista e acredito que vi um olhar emocionado do médico de plantão. Foi um momento mágico que durou uma eternidade, embora tenha durado alguns segundos. Eu nunca mais serei o mesmo e a compreensão da minha missão deu um salto depois de quase quarenta anos batizando crianças e adultos.
O batismo é o sacramento fundamental. Ele nos insere no Mistério de Deus que na nossa experiência cristã se revelou como trindade. Somos filhos no Filho e com ele nos tornamos morada do Espírito Santo. O mistério é imenso e a simplicidade do gesto sacramental comove. Ao mesmo tempo a força da palavra dita em nome da Igreja e como Igreja espanta. Que Deus é este que se submete a um ritual tão simples e singelo. É o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Jesus assumiu a história humana e a humanidade vive de rituais e o batismo é um deles. Naquele momento estávamos dizendo a pequenina Anahi que ela era bem vinda, amada e querida não só por seus pais biológicos, mas pela Igreja que a acolhe sem pedir nada em troca, mas simplesmente por amor
Num mundo dominado pelas leis do mercado naquela manhã ensolarada fizemos a experiência da gratuidade e do valor de cada ser humano, não importando a etapa da sua vida e nem sua condição de saúde. Somos todos humanos, e o somos juntos, somos parte uns dos outros. A vida tem um sentido em si mesma e como tal deve ser cuidada. Enquanto houver pessoas acreditando na dignidade de cada ser humano, o mundo tem jeito. Obrigado Anahi por existir e por nos fazer mais humanos.
ARTIGO DE DOM SERGIO EDUARDO CASTRIANI, ARCEBISPO METROPOLITANO DR MANAUS
PUBLICADO EM 15.7.2018 NO JORNAL EM TEMPO