Migrantes

Vivi a infância numa pequena cidade do oeste paulista que nasceu e se desenvolveu em torno da estação ferroviária e viveu do cultivo, primeiro do café, depois doalgodão, em seguida da criação de gado e nos tempos atuais da cana e da soja. Nos anos sessenta uma grande parte da população migrou para o Paraná, Mato Grosso e Rondônia. Minha lembrança maior é das famílias vizinhas que partilhavam o mesmo quarteirão, pois a cidade, embora pequena, era toda cortada por avenidas. Havia uma família espanhola, duas japonesas, três nordestinas, uma italiana, as quais se juntaram Dona Barbara e Seu Kalil vindos diretamente do Líbano.

Crescer neste ambiente foi uma aventura culinária, pois jantar ou merendar na casados vizinhos significava fugir do arroz com feijão e conhecer o sabor dos charutos com coalhada, bolinhos de arroz do Japão, carne seca e assim por diante. Conversar com os mais velhos era ouvir história de guerras distantes, de viagens de navio, de cidades destruídas pela bomba atômica. A macarronada dominical ficava por conta das minhas origens italianas e a feijoada vinha das raízes maternas, paulistas de Itu.

Quando cheguei à Amazônia descobri e me encantei com a história e a cultura dos povos indígenas e convivi com os descendentes de nordestinos que aqui chegaram no ciclo da borracha. Mas também descobri cemitérios judeusque testemunham a sua chegada nestas terras aos milhares. A minha história é a história do Brasil. Somos umpaís de migrantes, filhos e descendentes de homens e mulheres que por motivos vários foram obrigados a deixar a sua terra natal. Somos um povo que continua a se mover, inchando cidades, ocupando espaços, forjando cultura. Somos uma nação que convive com uma injustiça estrutural difícil de ser superada. O racismo e a exclusão existem ao lado de muito machismo e autoritarismo. Nossas raízes penetram no mundo trágico da escravidão e do genocídio. Mas também somos alegres, tolerantes, hospitaleiros, conscientes da relatividade do poder, da autoridade, e até de dogmas intocáveis. Somos capazes de rir de nós mesmos.

A chegada de uma nova leva de imigrantes ao Brasil,a pouco tempo os haitianos e agora os venezuelanos, veio testar a nossa capacidade de acolhida. Testemunhamos muita generosidade e organização, mas também muito preconceito e falta de responsabilidade. O fenômeno da migração é humano e vai continuar. Será sempre um dos indicativos do grau de desenvolvimento humano a forma como uma sociedade lida com ele. Para nós cristãos há uma indicação clara no evangelho: eu era estrangeiro e me acolhestes. A nós cabe sermos criativos nesta acolhida, tanto no plano emergencial e caritativo quanto no governamental através de políticas públicas que permitam aos que chegam a mesma oportunidade de integração que tiveram nossos antepassados. O imigrante incomoda e desafia. Cada um tem as suas responsabilidades, talvez o possível seja uma saudação amiga, ou um contrato de trabalho, mas poderia ser também uma ação do poder público que visse a chegada dos migrantes não como um problema, mas como oportunidade. Neste dia do migrante pensemos nisto.

 

ARTIGO DED DOM SERGIO EDUARDO CASTRIANI – Arcebispo Metropolitano de Manaus

PUBLICADO NO JORNAL EM TEMPO

Data de Publicação: 24.06.2018

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