Há momentos que no agito do dia-a-dia, uma janela se abre no olhar humano para observar a cidade que ai está. Quero partilhar com você um olhar, um pensamento, um sentimento, uma percepção sobre nossa Manaus, nossa cidade, nossa casa. Estando longe dela, nestes primeiros dias do ano, fui comunicado pelos noticiários que correram mundo a fora sobre o “rio de sangue” nos presídios de Manaus e Boa Vista. Mais uma vez, a cidade sorriso chora ao virar manchete pelas suas chagas que a vontade humana não cicatrizou.
Nesta semana, ao caminhar pelo centro da cidade de Manaus, fui impelido a praticar um olhar contemplativo para as pessoas que encontrei nesta andança. Confesso que alguns cenários que observei fizeram-me voltar no tempo, revisitar os anos 80, quando percebia muitos pedintes nas esquinas das principais avenidas e nas praças. Como outrora, vi o rosto do desemprego estampado nos inúmeros jovens, principais vítimas de uma crise que lhes tira o sonho, lhes rouba a esperança.
Também vi nesta andança rostos novos, de gente que veio de perto, de gente que veio de longe, venezuelanos, haitianos; gente cujo olhar expressa resistência, teimosia. Na venda de verduras em carros ambulantes, externam o desejo de encontrar um lugar ao sol, um sopro de oportunidade. Digo também que meus ouvidos voltaram-se aos relatos dos que testemunham o definhar do sistema público de saúde em nossa cidade, da espera sofrida de nossa gente pela marcação de uma cirurgia, cuja data ninguém sabe, culpa da falta de material.
Diante da minha percepção digo que os fatos destes primeiros dias do ano deixaram a atmosfera da nossa cidade de certo modo pesada, percebe-se um medo no ar. Medo de arrastão, de assalto, da violência de modo geral, da impunidade. Uma cidade refém de presos livres em penitenciárias. Ainda me lembro quando no ano passado visitei o local do “acidente pavoroso” pela pastoral carcerária, fui revistado três vezes. E com revolta percebo a facilidade que armas, celulares e drogas entram nos presídios negociados por aqueles que deveriam evitar tal situação.
Ao olhar minha Manaus desse jeito, ao sentir sua dor, seu desalento, lembrei repentinamente, de um trecho de um samba-enredo do ano de 1986, cujo eco chega 30 anos depois como um apelo, uma reivindicação: “Quero que meu amanhã, meu amanhã, seja um hoje bem melhor, bem melhor”. Faço desse refrão meu manifesto, meu apelo, meu sonho, minha luta e compartilho com você.
Quero ver crianças na escola, mães que possam deixar seus filhos na creche e partir para o trabalho com tranquilidade tendo na mente a certeza do bom tratamento dado aos filhos. Quero ver jovens sorrindo nas suas formaturas e não mortos nas “penitenciárias de extermínio”. Quero ver minha gente tendo acesso ao sistema público de saúde de qualidade e não entregue a própria sorte nos corredores dos hospitais deteriorados pelo descaso e pela corrupção. Quero ver este povo trabalhador tendo um serviço de transporte publico com qualidade e não humilhado pela espera de um ônibus que não chega, e não fatigado pelo calor da superlotação. Quero ver meus irmãos e irmãs do Haiti, da Venezuela, seja qual for a sua origem, não como ameaça mas como alguém a procura de um sonho, de uma nova esperança, de um recomeço.
Esse é um pouco do meu olhar sobre a minha cidade. Qual é o seu? Que de alguma maneira os fatos deste início de 2017 possam ajudar a termos um olhar diferente sobre nossa cidade, uma espécie de nova consciência sobre o mal que padecemos, as desigualdades, as injustiças, o descaso para com os mais pobres, para com os necessitados e para com as pessoas que trabalham de verdade, visando a construção de um país melhor. É preciso despertar dessa letargia que paralisa a consciência cidadã. É preciso se fazer ouvir. Dizer aos que aí estão no poder, o que queremos. Queremos um Brasil passado a limpo pela verdade e justiça. Queremos um país menos desigual e que valoriza um processo educacional com qualidade. Queremos um país sem casta de privilegiados, mas gerador de oportunidade para todos.
Que a nossa cidade volte a sorrir um sorriso sincero, não um sorriso falsificado nas campanhas eleitorais. Nossa cidade, nosso país, nossa gente que dia após dia faz a sua parte de maneira honesta e honrosa merece respeito, merece um amanhã melhor que hoje.
Pe. Charles Cunha
Artigo publicado do Jornal Diário do Amazonas
Em 15.1.2017, caderno de Cidades, página 23