Fé, esperança e caridade

O Evangelho deste domingo, o vigésimo nono do tempo comum da liturgia católica, termina com uma afirmação enigmática de Jesus. Trata-se do evangelho segundo Lucas, que é o evangelista do terceiro ciclo de leituras, o capitulo é o 18 e o versículo é o 8 na segunda parte. Diz o seguinte: “Mas o Filho do Homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a Terra?”. Certa vez assisti uma entrevista do cardeal Martini, na época arcebispo de Milão. Jesuíta, já falecido, ele foi um dos grandes exegetas do século passado, aliando rigor cientifico à espiritualidade na leitura orante da Bíblia. Na ocasião, a repórter, uma irlandesa, lhe perguntou se ele tinha medo de alguma coisa ou de alguém. Ele respondeu que o único medo que tinha era o de perder a fé.

A entrevistadora e creio que os que acompanhavam o diálogo entre os dois, eu incluído, não esperávamos esta resposta. Não da parte de um homem com a sua estatura moral e intelectual que representava o que de melhor tinha a nossa Igreja. Ao pedido que se explicasse ele citou o versículo acima. Uma conclusão se impõe, a fé pode ser perdida. A experiência mostra que isto é real. Não se trata somente de mudar de religião, mas de não acreditar mais, perder a esperança e fechar-se sobre si mesmo, incapaz de amar e viver a caridade. Numa sociedade extremamente religiosa como a nossa, com suas múltiplas expressões de piedade popular, de comunidades eclesiais, de espiritualidades de diversos matizes o fenômeno da perda da fé talvez fique escondido.

É possível ter religião, mas não ter fé? Talvez este fosse o medo do cardeal. Fé caminha junto com esperan- ça e caridade. Uma religiosidade que não tem esperança, que só tem a função de resolver as questões do aqui e agora numa atitude pragmática e imanente não é uma experiência de fé autêntica que implica abertura ao transcendente e ao totalmente outro. Uma experiência religiosa que não conduza a caridade, ao cuidado do semelhante, ao respeito pelo diferente, está longe de ser uma vivencia de fé autêntica segundo o Evangelho. A piedade pode ser uma forma de satisfação egoísta, onde o que importa é o sentir-se bem. O dito de Jesus com o qual iniciamos esta nossa reflexão está no contexto da confiança absoluta que Jesus nos convida a ter no Pai, confian- ça que se expressa nas orações constantes e na certeza de que Deus é Justiça e compaixão.

O desafio da espiritualidade cristã é não só acreditar em Jesus, mas como Jesus. Ele tinha confiança absoluta no Pai e isto o levou a dar a vida pela humanidade. Fé sem esperança gera hipocrisia, sem caridade gera orgulho e preconceito. Esperança sem fé é fantasia e sem caridade é enganação. Caridade sem fé humilha e sem esperança reforça preconceitos. Quando as relações humanas são marcadas única e exclusivamente por interesses, chegando a situações como a do trabalho escravo, tráfico humano, guerras genocidas, abuso sexual, fica difícil ver algo semelhante a fé. Mas o contrário também é verdadeiro e a multidão dos justos que vive pela fé também é imensa e salva o mundo mantendo viva a esperança e fazendo com que a caridade aconteça.

ARTIGO DE D. SÉRGIO EDUARDO CASTRIANI – Arcebispo Metropolitano de Manaus
JORNAL: EM TEMPO
Data de Publicação: 16.10.2016

Gostou? Compartilhe

Share on whatsapp
WhatsApp
Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on telegram
Telegram

Comentários